A Faxineira de Ilusões e a música do menino
Sou Faxineira, todavia de vez em quando preciso parar... Amparo o meu corpo cansado numa vassoura - que tem a missão de limpar, jogar fora, expulsar sujeiras, dejetos, degradações - e busco outros espaços.
Sou Faxineira, mas preciso descansar. Paro diante de uma casa e, da janela, espreito o que me atraiu. Escuto um menino tocar!
A música tem poderes...acalanta dores ou as desperta. Acalma o coração, aguça sentimentos, faz companhia...
Paro e escuto um menino tocar.
Que dor é essa que chega até mim, oprime e dá em minh’alma um abraço “colado, macio” (diria Clarice, a Lispector) para não mais sair? Que notas embalam o meu espírito fazendo com ele uma solidária dança de amor e temor?
Ouço, sinto e pressinto. É o sonho de um menino iluminado em sua expressão de dor e amor, de vontades, no momento, impossíveis de concretizar. É a música conversando com sua emoção.
Sou Faxineira. Esqueço que preciso varrer, varrer, esfregar, limpar e aguço o meu sentido para entender o que ele está querendo falar com as mãos e a emoção.
O que estou escutando é saudade... Quanta vontade de ajudá-lo!
Preciso sair daqui, respirar melhor, dar ao meu angustiante sentimento a oportunidade de soltar a dor contida, o grito abafado, a saudade desorientada que tomei para mim.
Sou Faxineira mas, de vez em quando, necessito absorver sonhos, desejos urgentes, soltar os balões de minha imaginação para acalentar a alma macerada, também, de saudades, inquietações e de questionamentos que não são esclarecidos.
Preciso sair daqui, deixar que a minha essência dance no infinito. Busco o meu improvisado corcel que recebi do meu amigo real, majestoso poeta (hoje em outra galáxia, talvez) que se escondia nas leis, sentia tão bonito e, com a experiência da idade, me dava as mãos estimulando as minhas quimeras.
Vôo com o seu corcel que agora o chamo de meu e invado o abismal espaço destinado aos sonhadores, levada pelo indômito animal, com ancas reluzentes, crina desgrenhada e incontroláveis cascos e alados ...
Tudo é permitido aos sonhos...
Preciso esquecer o que ouvi pelas mãos daquele menino. Preciso voar para reenergizar o meu coração. No momento, nada posso fazer...
Vôo, vôo para ver do alto o meu mundo real, cada vez menor, sumindo para que eu possa renascer.
Sou Faxineira de Ilusões porém é vital, em momentos, que abandone a minha função para sobreviver.
Atinjo o espaço, abrigo dos astros, reverencio Vênus-alva estrela que me dá recados silenciosos, respingo o rosto de estrelas, banho o corpo de luar.
Sobrevoo as águas e pouso etérea e amante num espaço adocicado pelo amor e grito as minhas saudades, solto as dores e as impossibilidades que apertam meu coração e aceno feliz para a liberdade que consigo internalizar.
A música que escutei me acompanha. Revolvo o pensamento no pensamento entristecido do menino e crio forças no espaço estelar que me torna imortal para lutar com todos os meus sentidos contra a tristeza que me abateu.
Preciso da esperança para sobreviver! Para ajudar o menino quando eu voltar...
Esforço-me para não cristalizar as lágrimas no rosto. Tenho necessidade do brilho no olhar para continuar aqui o meu labor, só que polindo estrelas, acendendo as luzes do firmamento, afastando as nuvens escuras para outras solidões bem distantes, reencontrando Capricórnio que inaugura o Zodíaco do Extremo Oriente, visitando Antares, colhendo um punhado de estrelas maduras e semeando constelações.
Quem sabe o menino não olha para os céus e recupera a alegria?!
Sou Faxineira. Do alto aguardo o sol ressurgir trazendo a manhã.
Preciso voltar pois daqui a pouco chegará o dia e, com ele, a alegria dos cantantes que tanto me fascinam.
Sou Faxineira de Ilusões. Aquieto o meu indomável corcel para ele descansar.
Acordo com o dia abraçando o azul do céu que na noite me abrigou e protegeu meus sonhos e ouviu meu lamento pelo menino que toca.
O dia é o espelho que me reflete e me ajuda ao meu reencontro. Volto ao meu labor, consciente do que sou.
Sou aquela que varre, limpa, esfrega, tira dos monturos os dejetos. Faxino ilusões...
Sou a mulher-faxineira que encarna todas as mulheres desajeitadas, humilhadas, inexpressivas, maceradas de ausências, silenciosas, banhadas pela brisa e encharcadas de coisas tristes, com pés sangrando de tanto andar, andar, andar, varrer, varrer.
Vejo o dia acordar, mas a música do menino adormeceu no meu coração.
Ela tem poderes, acalanta dores ou as desperta. Também impulsiona vontades e realiza sonhos, transformando-os em projetos reais.
Sou Faxineira.
Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia.